Black Lives Still Matter

É difícil ser branco em 2020.

Mentira. Não é, nunca foi, e tudo parece apontar para que não seja ainda durante muito tempo. É difícil ser pessoa, sim, e é especialmente mais desafiante ser certas pessoas do que ser outras, mas no grande esquema das coisas ser branco é uma espécie de poder extra num jogo de computador, que não nos apercebemos que temos até prestarmos atenção e repararmos que alguns dos outros jogadores não possuem o mesmo arsenal. É uma metáfora batida mas certeira, a de que estamos todos a jogar o mesmo jogo, mas que quem não é branco começa logo com o nível de dificuldade puxado ao máximo. Mais difícil ainda é ser negro e pertencer a outros grupos discriminados, numa tempestade perfeita de dificuldade. Mas sobre interseccionalidade falamos talvez noutra altura.

É claro que haverá alguns negros com vidas mais fáceis do que alguns brancos, mas garantidamente a cor não terá tido nenhum impacto nesta diferença, quando o oposto é verdade todos os dias e por todo o mundo.

Tive dúvidas – e tenho ainda – sobre escrever este texto. A linha entre uma reflexão que realmente contribui para a discussão e um acto performativo que me faz sentir bem comigo próprio é muito ténue, e espero que me ajudem a perceber onde me encaixo com este exercício. Depois da conversa com o Dalyn sobre Black Lives Matter e os acontecimentos recentes nos Estados Unidos, achei que não seria ok simplesmente avançar para o próximo tema no Sobretudo, particularmente quando o assunto deixou de ser excitante para o nosso ciclo noticioso, apesar de ainda tudo estar a acontecer.

Outra fonte de motivação é a consciência de que a comunidade negra (assim como outras minorias) não tem dever nenhum de nos educar nem de nos fazer ver “o seu lado”, que não pode de maneira nenhuma ser outro que o nosso também. Nas últimas semanas tem-se tornado cada vez mais claro o quão cansados estão os activistas ou, ainda menos razoável, quão exausta está qualquer pessoa negra, por ter de lidar com os pedidos de explicação sobre o que se tem estado a passar ou sobre a sua realidade quotidiana, como se fosse sua a responsabilidade de nos instruir a todos e de mudar o modo como eles próprios são compreendidos – particularmente quando gritam por igualdade há décadas, senão há séculos, sem serem realmente ouvidos.

Cansativa foi também outra forma de performance, sem dúvida com boas intenções, quando de repente todos nos lembrámos dos amigos e conhecidos mais escuros que temos, que contactámos depois de anos de silêncio para perguntar se estavam bem e partilhar hashtags e emoji com punhos fechados. Vi vários pedidos públicos de reflexão, a propôr que se pensasse duas vezes se aquela mensagem era realmente sentida ou se, mais uma vez, servia para nos sentirmos bem connosco próprios. Há pontos bónus para quem meteu conversa há umas semanas mas voltou a remeter-se ao silêncio depois de passado o pico noticioso.

Temo que seja difícil não soar moralista nesta reflexão, mas a verdade é que eu estou no mesmo barco, porque cada novo tema é uma auto-análise sobre motivação, privilégio e ângulos-mortos que vão sendo descobertos. Afinal talvez haja alguma dificuldade em ser branco em 2020: mais do que nunca, os protestos americanos e especialmente a torrente de casos assustadores de racismo estrutural e de violência impune contra os negros foram um espelho monstruoso e desconcertante que me forçou a olhar para minha própria conivência e tolerância à intolerância, que continuo a digerir e a perceber como posso minorar.

Vidas negras não importam.

Uma das mensagens mais importantes que retive do episódio sobre Black Lives Matter foi a importância da mensagem encerrada naquela frase.

Ninguém nega que todas as vidas importam. Obviamente. Ninguém sério no movimento #BlackLivesMatter acha que algumas vidas não importam.

O que é assustador, mas que não é fácil de interiorizar não pertencendo a determinadas comunidades ou, especialmente, não vivendo nos Estados Unidos, é que foi preciso criar um movimento cujo objectivo é lembrar à polícia e à comunidade que as vidas das pessoas negras não valem menos do que as restantes. É arrepiante chegar a esta conclusão, mas é esta a realidade. Durante anos, décadas, séculos, o que se tornou aparente é que, para muita gente, vidas negras não valem. São descartáveis, irrelevantes e o seu fim é inconsequente. É por isso que a expressão All Lives Matter (todas as vidas importam) é uma negação de si própria quando usada conscientemente e em oposição a Black Lives Matter. É oximorónica porque quer negar que as vidas negras importam, e como tal, na verdade quer apenas dizer que nem todas as vidas têm o mesmo valor.

Talvez ajude pensar em Black Lives Matter como uma resposta a uma pergunta sangrenta que é colocada há séculos, ou simplesmente como se houvesse ali uma palavra extra no final. Vidas negras importam [sim].

E então?

Não há soluções absolutas, mas uma das propostas mais notórias dos protestos americanos, também mencionada no episódio anterior, é o corte ao financiamento e até ao simples desmantelamento das forças policiais em pelo menos algumas comunidades nos Estados Unidos. É algo difícil de compreender à partida, porque serviços públicos de segurança são uma inerência do contrato social como o conhecemos hoje, especialmente para quem, mais uma vez, não partilha das experiências ou mesmo do contexto de quem clama por esta medida.

A origem e evolução da polícia americana é indissociável da desigualdade racial em pelo menos alguns Estados, mas a realidade actual é de uma polícia militarizada, sobre-financiada e sem paralelo em qualquer outra democracia, repetidamente criticada como desproporcional e sem correlação com os dados sobre crime violento e os resultados atingidos. Este vídeo do Guardian é uma excelente introdução ao assunto:

 

 

Como em muitos outros temas, tenho alguma dificuldade em fazer meus estes sentimentos, mas não é difícil pelo menos compreender que a manutenção de uma comunidade e dos seus actores depende de um equilíbrio que deixou de existir e do tal contrato social que é rasgado de cada vez que uma vida humana vale menos que um objecto ou que um capricho. As histórias repetidas e assombrosas que nos convencem de que um encontro com a polícia é a certeza de uma pena de morte para muitos negros nos Estados Unidos têm de nos permitir olhar para aquilo que achamos intocável e repensar o modo como nos organizamos. Não é, portanto, difícil de compreender: se repetidamente morrem pessoas inocentes às mãos da polícia sem grandes consequências depois de tantos anos, qual é o preço que estamos dispostos a pagar para que apenas parte da população se sinta segura? Vivemos num mundo em que este vídeo existe:

 

 

E o que fazer?

Proponho que o primeiro passo seja este. Perceber melhor o que se passa, o que se passou, sempre com sentido crítico – mesmo sobre conteúdo favorável à nossa opinião – para tentar ter noção de uma realidade que é muito diferente da nossa. Mais uma vez, somos grandinhos e existe muita informação disponível. Apesar de ser sempre bom ouvir quem está mais próximo da situação, se estiverem disponíveis, a responsabilidade é nossa de ir procurar respostas às nossas perguntas. É importante também lembrar que não é por ter deixado de estar nas trends que o tema deixa de ser importante, e que todos os dias há desenvolvimentos.

Como disse acima, ouvir é bom, especialmente se passarmos a incluir vozes mais diversas e representativas no nosso quotidiano, sobre este ou outros temas. Podcasts, incluindo por exemplo os da lusófona Bantumen, o adormecido Radio Afrolis, ou o Link na Bio, de Carlos Pereira, livros, incluindo sobre racismo em Portugal ou de autores afrodescendentes (e que difícil é encontrá-los!), ou outros recursos, como a incrível lista recolhida pela Comunidade Cultura e Arte, são um bom começo.

Ajudar. Há várias maneiras de dar apoio, mesmo estando tão longe. Participar em protestos físicos ou virtuais ajuda a fortalecer os movimentos que se criaram em Maio de 2020, e também é possível apoiar os protestantes, através de fundos de apoios financeiros para fianças, directamente ou através de mecanismos como vídeos youtube cujas visualizações são monetizadas e resultarão em doações – não há maneira de confirmar, terá de ser feito à confiança, mas não custa mesmo nada, já que nem é preciso estar a ver.

Finalmente, é importante olhar para o nosso próprio quintal. A realidade americana é bastante diferente da nossa, mas o racismo quotidiano, estrutural, implícito ou descarado está longe de desaparecer. Cada piada sem piada que é só um comentário inquietante, cada negro que opta por não colocar a foto no CV, cada conferência sobre diversidade sem variação nos tons de pele, são lembretes da nossa condição de sociedade primitiva, que teima em não evoluir. Alguns recursos mencionados acima também ajudam a olhar para o racismo em Portugal, mas olhar para o próprio quintal é também olhar para o umbigo e pensar se diríamos a mesma piada com um negro a ouvir, ou porque é que ainda sussurramos quando nos referimos a alguém com pele escura.

Ser branco é trazer consigo séculos de privilégio sem noção e décadas de educação e de hábitos sem consciência, que são bastante difíceis de despir. No que toca a fardos é bastante leve, e cabe a cada um perceber como o carrega, ou se se esforça para ir perdendo essa bagagem. Porque o fardo é meu, mas não é em mim que causa dor.

 

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